JUDICIÁRIO ENFRENTA TENSÕES ENTRE LAVAJATISMO E BOLSONARISMO

Na mira de uma CPI, Poder Judiciário no Brasil é bom para o juiz e ruim para o país é motivo de tensões entre lavajatismo e bolsonarismo

Segundo-feira, 23 de Setembro de 2019
Olavo de Carvalho, o guru bolsonarista sumido, está uma fera com a nova tentativa de aliados do presidente de criar uma CPI para investigar o Judiciário, esse poder que em 30 anos tornou-se um paraíso para juiz e seus funcionários e um inferno para o País. Em um vídeo nas redes sociais da web dia 15, Carvalho teorizou: “Vamos combater primeiro os comunistas, seus idiotas. Não entenderam ainda? O problema no Brasil não é a corrupção, é o Foro de São Paulo, é o poder esquerdista”.

Nota dez em hipocrisia. Jair Bolsonaro elegeu-se como a virgem no lamaçal e agora seu guru diz que isso daí é o de menos, tá ok? Apoiadores da eleição do ex-capitão, vide a presença de Sérgio Moro no governo, os partidários da Operação Lava Jato caminham para se divorciar do bolsonarismo, separação capaz de tirar pontos do já baixo ibope presidencial. E a CPI da Lava Toga destaca-se no litígio, graças ao jogo “uma mão lava a outra” do senador Flávio Bolsonaro com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, alvo número um da CPI.

A proposta de criar a comissão tem as assinaturas necessárias no Senado, e Flávio, ex-patrão de Fabrício Queiroz, homenageador de milicianos e dono de grande tino imobiliário, age para matá-la. Quem o dedurou foi uma colega de PSL. Quer dizer, ex-colega, pois após o episódio, Selma Arruda, do Mato Grosso, filiou-se ao Podemos, na quarta-feira 18. A senadora de 56 anos contou em público que Flávio lhe telefonou e pediu para tirar a assinatura da CPI. Ele teria dito que a apuração tumultuaria Brasília, péssimo para o governo do pai. E falado em voz alta. “Eu me recuso a ouvir grito, então desliguei o telefone”, afirmou Selma. Flávio negou: “Jamais gritaria ou trataria mal”. Qualquer observador da família Bolsonaro, clã de homens chiliquentos, acha a versão de Selma mais fiel à realidade. E olha que a senadora não é santa, apesar de ter sido juíza por 22 anos.

Nascida em Camaquã, cidade gaúcha de 62 mil pessoas, Selma pendurou a toga em março de 2018, para disputar a eleição pelo estado onde trabalhava. Vendeu-se na campanha como “Moro de saias”. Em abril passado, foi cassada por caixa 2, crime que um dia o ministro da Justiça achou pior que corrupção. Uma decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso. Selma é acusada de fazer campanha antes da hora, e com grana escondida do TRE. A prova está em uma cobrança judicial movida pela empresa que ela havia contratado para cuidar de sua imagem, a Genius. O dinheiro pago à firma, 1,2 milhão de reais, saiu de um empréstimo feito pelo suplente da senadora, o empresário Gilberto Possamai, igualmente cassado. Selma só não perdeu o mandato ainda por ter recorrido ao Tribunal Superior Eleitoral.

Com Selma, o PSL tinha quatro senadores, numa casa de 81. O líder da bancada, o paulista Major Olímpio, defendeu que era Flávio quem deveria sair. Em Brasília circula que Olímpio e outros do PSL sonham com uma chapa presidencial em 2022 formada por Moro e a deputada estadual em São Paulo Janaína Paschoal, advogada do impeachment de Dilma Rousseff.

Mais uma pista do divórcio à vista entre bolsonarismo e lavajatismo, alimentado pelas ações do presidente para salvar Flávio e amigos milicianos: troca na chefia da Polícia Federal no Rio, escolha do novo PGR fora da lista tríplice votada pela categoria, queixas públicas contra auditores da Receita Federal e por aí vai. Não deve ter sido coincidência a PF ter vasculhado na quinta 19 o gabinete do líder de Bolsonaro no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB), e de seu filho deputado, Fernando(DEM). Cheiro de retaliação.

A CPI que Flávio quer enterrar é a terceira tentativa feita em 2019 pelo senador-delegado de polícia Alessandro Vieira, do ex-PPS de Sergipe, de investigar o Judiciário. Este já foi alvo de uma CPI no Senado em 1999. Foi aquela comissão que provou mutreta do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, hoje de 91 anos. No comando dos preparativos de uma obra de construção de um fórum trabalhista em São Paulo, Lalau montara uma fraude de 169 milhões de reais. Um dos parceiros da falcatrua era senador pelo Distrito Federal, Luiz Estevão, dono de uma empreiteira, e foi cassado em 2000, o primeiro senador a ter tal destino.

Vieira, de 44 anos, sonha em repetir aquela CPI. Tentou primeiro em fevereiro, ao listar 13 casos dignos de apuração, coisas como atividades empresariais de juízes. Conseguiu as assinaturas necessárias (27), mas dois signatários, Kátia Abreu, do PDT de Tocantins, e Tasso Jereissatti, do PSDB do Ceará, recuaram, a pedido de Gilmar Mendes, juiz-empresário do STF. Vieira arranjou novos apoios e reapresentou a CPI em março. Daí foi o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, do DEM do Amapá, quem deu um jeito de engavetar (quer repetir a dose agora). A terceira tentativa nasceu em setembro, de novo com as assinaturas mínimas. Seu foco é um só, Toffoli, do Supremo. Motivo: a decisão dele, de março, de abrir um inquérito para investigar o uso de notícias falsas, pela web, contra o STF. Decisão “ilegal e arbitrária” de Toffoli, que agiu “de maneira absolutamente incompatível com o decoro”, diz Vieira.

Toffoli entregou por conta própria a condução do inquérito, sem o sorteio eletrônico costumeiro, ao juiz Alexandre de Moraes. É geral a desconfiança em Brasília de que o controverso inquérito tem o objetivo de salvar a pele de Mendes, Toffoli e suas respectivas senhoras, Guiomar Feitosa e Roberta Rangel. Foi nesse inquérito que Moraes mandou afastar dois auditores da Receita Federal: um que era autor de análises fiscais preliminares sobre o casal Mendes e sobre Roberta, Luciano Francisco Castro, outro que teria facilitado o vazamento do material, Wilson Nelson da Silva. Ao UOL, Mendes, que com Toffoli e Moraes compõem um bloco de poder no tribunal, disse que uma CPI para investigar o Supremo ou um juiz de lá “é flagrantemente inconstitucional”. Mais: que não produzirá resultado, pois o STF “certamente mandaria trancá-la” e, mesmo que não mandasse, a CPI “não conseguiria arrastar” ninguém para depor, nem quebrar sigilos.

Por via das dúvidas, Flávio age para matar a CPI no berço. Há motivo para ele sair em defesa de Toffoli? E como. Deve ao juiz a paz desfrutada desde julho no caso Queiroz. Nas férias do Supremo, Toffoli suspendeu, por liminar, todos os processos judiciais que usavam dados bancários fornecidos por órgãos públicos sem aval de um juiz. O caso Queiroz cai aí: o ex-Coaf, hoje Unidade de Inteligência Financeira, descobriu a estranha vida bancária do ex-PM, 1,2 milhão de reais de giro numa conta entre 2016 e 2017, e contou ao Ministério Público. Entre as estranhezas, 24 mil depositados na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. A liminar de Toffoli saiu em uma ação que nada tinha a ver com Flávio e Queiroz até o advogado do senador pedir para tomar parte nela. Valerá até 21 de novembro, data do julgamento da ação.

“Enquanto houver uma casta privilegiada que não pode ser sequer investigada, sequer incomodada, não estaremos vivendo uma democracia de verdade”, tuitou Alessandro Vieira, ao defender a CPI da Lava Toga. O Judiciário é realmente uma casta privilegiada. Juiz decide muito, ganha demais, tem funcionários muito bem pagos, enquanto o Poder em si é um caos, elitista e concentrador de renda. É o diagnóstico do brasileiro Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e do americano Matthew MacLeod Taylor, da American University, no recém-publicado artigo “Juízes eficientes, Judiciário ineficiente no Brasil pós-1988”.

Da Ros foi quem descobriu, em 2015, que a Justiça daqui é campeã mundial de gastos em termos de fatia das riquezas geradas em um ano no País. Naquele ano, a despesa era de 1,3% do PIB. Em 2018, foi de 1,4%, informa o novo anuário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de agosto. Em 2015, quem vinha atrás aparecia longe, com 0,3%, Alemanha e Venezuela. Da Ros encontrou novidades de lá para cá, mas nada que tire o ouro do Brasil: Costa Rica gasta 1,25%, Argentina 1,09% e El Salvador, 0,99%. Salário é a principal fonte de despesas do Judiciário nacional: 90% do gasto total de 93 bilhões de reais em 2018, conforme o anuário do CNJ. O salário médio dos juízes foi de 46,7 mil, 21 vezes a renda média do trabalhador em dezembro daquele ano, de 2,2 mil reais, segundo o IBGE. O de seus servidores, de 15,3 mil, sete vezes a renda dos trabalhadores.

Os magistrados embolsam mais do que a Constituição permite ser pago com verba pública, que é o salário no STF, 39 mil reais. Isso ocorre graças a um festival de penduricalhos inventados para furar o teto. No dia 13, o CNJ, a quem cabe vigiar tribunais, universalizou uma mordomia para juízes e servidores da Justiça. Todos receberão um auxílio-saúde de 10% do salário, caso não tenham convênio do tribunal em que trabalham. O Senado aprovou em 2016 uma lei para tentar coibir essas artimanhas fura-teto, mas a lei está parada na Câmara. Em agosto, um deputado de Roraima, Jhonatan de Jesus, de 36 anos e do PRB, propôs votar com urgência o projeto, mas ainda não há decisão.

O holerite dos magistrados daqui não tem paralelo no mundo e suas regalias, como auxílios saúde, alimentação, transporte, são jabuticabas. “O Judiciário da maioria dos países europeus não fornece tais benefícios. Auxílio à moradia, por exemplo, existe apenas em Portugal, na Rússia e na Turquia. Inversamente, os únicos auxílios adicionais recebidos por magistrados na Alemanha, na Espanha, na França e na Itália são relativos à produtividade”, escrevem Da Ros e Taylor. Aqui um togado em início de carreira ganha 11,3 vezes o PIB per capita e, no fim, 13,9 vezes (a conta baseia-se no PIB per capita de 2017, de 2.632 reais mensais). Nos Estados Unidos esses números são 3,2 e 4,1. Na Alemanha, 1,2 e 3,1. Na Itália, 2 e 6,7. Em Portugal, 1,7 e 4,1. Na França, 1,1 e 3,4. Na Espanha, 2,1 e 4,7. O contracheque coloca os 18 mil juízes brasileiros no 1% mais rico, clube do qual se faz parte com 27 mil reais, conforme o IBGE. Somos o 10o país mais desigual do mundo, diz a ONU, mas na concentração de renda no 1%, somos vice. O 1% fica com 28% do PIB, segundo uma equipe coordenada pelo economista francês Thomas Piketty. Só o Catar ganha, 29%.

Além do salário de marajá e das mordomias, os magistrados brasileiros possuem 60 dias de férias por ano garantidas em lei. Mesmo que não as tirem integralmente, o que ajudaria a reduzir o estoque de 78 milhões de processos pendentes nos tribunais, eles as vendem. E enchem mais os bolsos. Seus funcionários são muito bem pagos também e formam um batalhão enorme, duas coisas também sem igual no mundo. A média salarial dos servidores da Justiça equivale a cinco vezes o PIB per capita. É mais do que recebem juízes estrangeiros. Nos EUA, em Portugal e na Espanha, um togado em fim de carreira ganha quatro vezes o PIB per capita. Na Alemanha e na França, três. O número de funcionários do Judiciário, 450 mil, equivale a 207 para cada 100 mil brasileiros. A maioria dos países tem de 33 a 67 funcionários. Quem chega perto daqui são Argentina (150), Eslovênia (161) e Croácia (162).

Se os juízes estão no 1% mais abonado, seus servidores são igualmente privilegiados. Integram o time dos 10%, que nos cálculos do IBGE são os que ganham acima de 9,5 mil reais mensais. Não surpreende Da Ros e Taylor terem escrito que “outra área de preocupação é o elitismo do Judiciário”. Esse elitismo fica exposto, por exemplo, “na fraca resposta do sistema judicial a casos de direitos humanos, como homicídios praticados por policiais, com especial impacto sobre pobres e não brancos”. De 1997 a 2017, aumentou 429% o número de assassinatos de crianças e jovens negros, conforme um estudo de abril da Fundação Abrinq. A alta nas mortes de brancos foi de 102%. Entre os juízes, 80% são brancos (a população autodeclarada branca é de 45%), segundo o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros divulgado em 2018 pelo CNJ. As regiões Sul e Sudeste, as mais ricas, possuem 56% da população, mas 65% dos togados.

Apesar de muito bem pagos pelos 200 milhões de brasileiros, juízes e seus servidores não produzem uma Justiça eficiente. Ao contrário. “Demonstramos a existência de um aparente descompasso entre magistrados de alta produtividade decisória e um poder Judiciário de baixa resolutividade no Brasil, isto é, com reduzida capacidade de resolução definitiva de conflitos em tempo hábil”, anotam Da Ros e Taylor.

A dupla vê “redundância decisória” no sistema. Juízes decidem da cachola, sem dar bola para outras decisões em casos semelhantes e para a jurisprudência das altas cortes. O Supremo, aliás, é exemplar do cada um por si. Um exemplo de “redundância decisória” por lá. Em 2016, Gilmar Mendes proibiu, por liminar, Lula de ser ministro de Dilma Rousseff, pois via tentativa de proteger o petista de Moro, tese liquidada pelas revelações do The Intercept. Em 2017, Celso de Mello negou liminar em uma ação que apontava a mesma blindagem contra um juiz de primeira instância por trás da nomeação ministerial do emedebista Moreira Franco por Michel no Temer.

Diante da “redundância decisória”, comentam Da Ros e Taylor, chega a ser “racional” uma empresa levar qualquer disputa para o Judiciário e tentar postergar uma decisão o quanto puder. E não falta advogado no Brasil, lembram os pesquisadores: 1,1 milhão registrados na OAB. Em 2010, o CNJ mostrou que o País sozinho tinha mais cursos de Direito do que EUA, Europa e China juntos. Para Da Ros, os magistrados têm independência demais aqui e deveriam ter menos. Não confundir com mordaça. O que deveria ocorrer, afirma, é os juízes seguirem jurisprudências existentes, por exemplo.

Além do cada um por si decisório e da massa de advogados, o sistema judicial arquitetado pela Constituição de 1988 contribui para o caos e a ineficiência do Judiciário. Na ditadura (1964-1985), segundo Da Ros e Taylor, os tribunais eram subservientes aos militares. Para enterrar esse passado, os constituintes criaram mecanismos que tornassem a Justiça mais acessível e atuante. Coisas como ações civis públicas, defensorias públicas, autorização para partidos políticos entrarem com ações diretas de inconstitucionalidade, Ministério Público livre.

O MP, aliás, é outro reduto de marajás. Em agosto, o procurador Leonardo Azeredo dos Santos, de Minas Gerais, reclamou durante um debate sobre o “miserê” que recebe por mês com verba pública, 24 mil reais. Dizia que reduziria seu gasto mensal no cartão de crédito de 20 mil para 8 mil, mas que não está “acostumado com tanta limitação”. Depois disso, saiu de licença do cargo, no aguardo de ser esquecido.

Diante do que foi construído pós-Constituição, o resultado foi o “vertiginoso aumento da demanda” judicial, segundo Da Ros e Taylor. Fácil entender por que o Brasil tem 78 milhões de processos parados, alta de 29% em uma década, e por que os dois pesquisadores consideram “improvável que a demora na tramitação da maior parte dos processos se reduza significativamente no horizonte próximo”. A saída preferida pelo Judiciário é crescer mais. No dia 11, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou a criação de um sexto Tribunal Regional Federal (TRF), a segunda instância federal, para cuidar só de Minas. Hoje o estado é um dos 14 do TRF1, sediado em Brasília, e representa 35% dos processos. A proposta do STJ, que depende de aprovação do Congresso, abre 18 vagas para juízes. A corte aproveitou o embalo e criou mais 36 vagas, para tribunais diversos. Resultado final com 54 novos juízes: gasto extra de 2,5 milhões de reais por mês, se a turma embolsar a média paga aos togados em 2018 (46 mil).

Jair Bolsonaro agradece. Como presidente, caberá a ele nomear os 54 novos juízes, com base em listas tríplices preparadas pelas cortes. Olavo de Carvalho tem razão: CPI Lava Toga para quê?

Da Carta Capital

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